sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Estas sempre nos nossos corações

2009-11-10


Queridos amigos do Silvestre


Se o nosso Gatinho fosse vivo, faria hoje 23 anos. Ele nasceu de cesariana por volta das 8 da manha, e lembro-me de quando me colocaram no colo, já na sala de recobro, ele olhava para mim com um ligeiro franzir do sobrolho, muito sério, como que se me estivesse a avaliar … e lembro-me de ter contado os dedinhos dos pés e das mãos para me certificar se estavam todos e depois de ter colocado a mão dentro da fralda para confirmar se era realmente um menino … e olhava para mim com um olhar de velho, um olhar que parecia trazer uma carga de sabedoria, de vir de um ponto que eu não conhecia, que eu não poderia conhecer …
O Silvestre era mesmo a personificação do nome dele: gostava muito de estar sozinho, não se importava com isso, e ao mesmo tempo, ele incluía-se no conjunto, tal como uma flor silvestre, mesmo que estando isolada, está sempre no conjunto de verde que a rodeia. Ele sempre quis pertencer ao grupo, ao mesmo tempo manter o seu ponto de vista, a sua forma de olhar para as pessoas, para a vida. Opinado como ele era ….
Foi o Silvestre que me ensinou a frase: olhar para as pessoas com os olhos do coração. Olhar para as pessoas por dentro e não por fora. Ele conseguiu definir em palavras aquilo que sempre lhe tentei ensinar: na sociedade de hoje nem sempre olhamos com os olhos do coração: olhamos com os olhos da estética, dos bens materiais, mas esquecemos de olhar com os olhos do coração, esquecemos de olhar para dentro, por dentro, esquecemos de tratar os outros como gostaríamos de nós sermos tratados…
Tenho muitas saudades do Silvestre: raro é o dia em que não encontro uma coisa que ele escreveu, um postal do Dia da Mãe, ou quando em casa me dizem que o jantar cheira bem, lembrar-me que ele dizia: “cheira bem, cheira a cozinhados da mãe” … Tive que aprender a ser outro tipo de mãe, porque a condição de mãe mantém-se, o vinculo mantém-se mas os sonhos e os planos que eu esperava que ele iria começar a formular, que um dia iria começar a namorar, que eu iria ser sogra, iria ser avó … tenho que aceitar que o tempo que me foi dado para estar com ele, chegou ao fim naquele dia, naquela noite, e agora o tempo é outro. E por vezes não sei como viver este tempo ….
Como é que se vive com a morte dum filho? Não sei … tento estar ocupado o mais tempo possível, continuo envolvida em muito trabalho voluntário, estive envolvida nas três campanhas eleitorais deste ano, inclusivamente tendo feito parte duma lista para as eleições autárquicas, até porque esta participação foi tema da nossa ultima conversa em Alcoitão no dia 25 de Janeiro, na minha ultima visita, em que ele fez sinal com a cabeça para eu aceitar … não podia não aceitar o convite. Ao mesmo tempo sinto, que apesar de tudo, fui privilegiada: privilegiada por ter sido mãe dum miúdo que aprendeu a sorrir com um sorriso tão bonito, privilegiada por me ter sido permitido estar com ele até ao último momento, o ultimo respirar. Refilei com Deus, discuti com Deus, dizia-lhe que, se não ia curar o Silvestre, então que o levasse porque era impossível aquele sofrimento … mas era-me impossível sair daquele quarto no SO de S. Francisco Xavier. Ninguém mais podia estar ali: eu estava lá quando ele nasceu – tinha que lá estar quando ele fosse embora.
O Silvestre foi muito abençoado, porque ele soube o que era ter amigos, ter amor, estar rodeado de carinho. E quando o Silvestre morreu, morreu um homem muito rico: rico pelos amigos, pelo carinho, pelo apoio que ele teve, mas rico também porque ele era especial, e tornou-se ainda mais especial durante “o tempo dos hospitais” … e ensinou-me a importância dum sorriso, daquele sorriso iluminado que ele tinha descoberto dentro dele …
Sonhei com o Silvestre uma noite … estava em pé, gordinho como ele era, calções bege e T-shirt preta e trazia um porta-fatos na mão, via-se a pontinha dum fato azul e ele dizia-me: “Mãe, podes dar esta roupa, porque já não vou precisar mais dela …” o mesmo fato que a irmã não me deixa dar a ninguém … estava tão feliz para vê-lo bem, que queria abraça-lo, mas naquele momento acordei e fiquei triste por o sonho ter ficado interrompido …
Amo-vos a cada um, pelo bocadinho de Silvestre que guardam nos vossos corações, por terem sido soldadinhos daquela guerra. Uma guerra que seria muito difícil, senão impossível, de ganhar: a recuperação do Silvestre estava muito comprometida, ele tinha lesões oculares, as infecções tinham deixado sequelas, ainda em S. José foi-me dito que a definição clínica do Silvestre era de “um doente tetraplégico em alto risco de vida” … O Silvestre morreu em resultado duma infecção meningo-encefalica: pelo menos foi o que me disseram naquela noite, na noite em que ele partiu para conduzir a sua “Fera” por estradas onde não há postes de electricidade que possam cair num embate, onde as estradas são bem-desenhadas, sem curvas perigosas nem óleo na estrada …

Mãe do Silvestre
gracalacerda@portugalmail.pt

2 comentários:

Anónimo disse...

muitas, muitas saudades...

Ana.

Anónimo disse...

Eu ainda penso em ti todos os dias. Apesar da nossa amizade ter tido muitos altos e baixos, a verdade é que tenho muito orgulho em ti pela forma como lutaste até ao fim. Nunca me hei-de esquecer dos nossos momentos vividos antes do acidente mas principalmente nunca me vou esquecer da ultima vez que te vi. Estavas quase a recuperar a fala e quando eu entrei pelo quarto, a enfermeira perguntou-te quem era eu e, com um grande sorriso, a tua boca pronunciou a palavra "amigo". Mudaste a minha vida para sempre.

Onde quer que estejas, um abraço do tamanho do mundo de um amigo que tentou sempre dar-te toda a força que pode.

Sei que valeu a pena.